Todos nós
somos chamados à santidade (“vós vos santificareis e sereis santos, porque eu
sou santo”, Lv 11,44; 1Cor 1, 2; 1Pd 1, 15-16). E, por vezes, a misericórdia de
Deus, para sua maior glória, tira-nos da miséria através de uma vocação
particular.
A liturgia
do último domingo me fez retornar à época em que Deus especialmente me lembrou
disso.
Foi um
chamado para um longo caminho, do qual até hoje eu apenas vejo o monte, sigo
para lá, mas cabe a Deus decidir qual o destino. E, nesse monte, Deus nos vê de
longe. Tudo que está perto passa, passa rápido. Mas o monte continua lá,
impassível, vencendo o tempo e o espaço.
Pelos idos
de 1994 ou 1995, por encaminhamento de Padre Penha, conheci Livanildo, o qual
me apresentou a Pastoral Universitária. Mas não foi aí ainda que eu entendi o
que isso significava ou o que era Igreja. Mas me apaixonei por aquele chamado
antes mesmo de conhecê-lo.
Certo dia,
movido pela Palavra, fui até o apartamento de Hildemar, e lá expus como eu
fiquei maravilhado com esta frase: “Vós sois o
sal da terra”! Pois bem, “se o sal se tornar
insosso, com que salgaremos?”! (Mt 5, 13)
É preciso trabalhar, cada um como foi chamado, pois, primeiro, o Reino
de Deus (Mt 6, 33).
E, na mesma liturgia, São Paulo nos diz: “a minha palavra e a minha
pregação não tinham nada dos discursos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração
do poder do Espírito, para que a vossa fé se baseasse no poder de Deus e não na
sabedoria dos homens” (1Cor 2, 4-5).
Saber deixar Deus agir, sem sermos omissos, é muito importante. Lembra a
passagem na qual o Senhor nos ensina: “Quando fordes presos, não vos preocupeis
nem pela maneira com que haveis de falar, nem pelo que haveis de dizer: naquele
momento ser-vos-á inspirado o que haveis de dizer” (Mt 10, 19), “porque o Espírito
Santo vos inspirará naquela hora o que deveis dizer” (Lc 12, 12).
Por isso
se pode dizer que feliz é “o homem que teme o Senhor, e põe o seu prazer em
observar os seus mandamentos” (Sl 111, 1), pois “aos que o temem deu-lhes o
sustento” (Sl 110, 5).
Esses
mandamentos são, acima de tudo, liberdade de tudo que é mundano e oprime o
homem como espinhos (Mt 13, 22; Mc 4, 7; Lc 8, 7), por mais difícil que por
vezes nosso compromisso possa parecer (“o mandamento que hoje te dou não está
acima de tuas forças, nem fora de teu alcance”, Dt 30, 11).
Mas o mal
nos convida a aderir a ele, como se o real e tangível fosse o verdadeiro bem (RATZINGER,
Joseph. Jesus de Nazaré. Trad. por José
Jacinto Ferreira de Farias, scj. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. p.
41). Adverte-nos sobre o tema São Francisco de Assis: “mesmo que fosses tão
arguto e sábio a ponto de possuíres toda a ciência, saberes interpretar toda
espécie de línguas e perscrutares engenhosamente as coisas celestiais, nunca
deverias gabar-te de tudo isso, porquanto um só demônio conhece mais das coisas
celestiais e ainda agora conhece mais as da terra que todos os homens juntos” (c.
V, 5-6). Da mesma forma, São Tiago: “Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também
os demônios crêem e tremem” (Tg 2, 19). E mais: “cada um é tentado pela sua
própria concupiscência, que o atrai e alicia” (Tg 1, 14).
Por isso a
grandeza de Deus se revela naqueles que buscam a santidade. Disse São Paulo que
não procurou mostrar sabedoria, para que pudessem os ouvintes saborear as
palavras do Espírito. De modo semelhante, disse Francisco que Deus não viu “entre
os pecadores nenhum mais vil, nem mais insuficiente, nem maior pecador do que
eu, e porque, para fazer aquela operação maravilhosa que ele quer fazer, não
encontrou nenhuma criatura mais vil na terra; e por isso me escolheu para confundir
a nobreza, grandeza, força, beleza e sabedoria do mundo, para que se saiba que
toda virtude e todo bem vêm dele e não da criatura, e que nenhuma pessoa pode
se gloriar diante dele; mas quem se gloria, glorie-se no Senhor, a quem
pertencem toda honra e toda glória para sempre” (Fioretti, c. 10).
Portanto,
não é na sabedoria do mundo que iremos encontrar nossas respostas. Ao
contrário, é na entrega ao Amor de Deus que ela repousará: assim se manifesta
nossa obediência.
“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 5). Eis o primeiro grande mandamento.
“Quando no
meio de vocês aparecer algum profeta ou intérprete de sonhos e apresentar a
você um sinal ou prodígio - se esse sinal ou prodígio que ele anunciou se
realiza e ele convida você: ‘Vamos seguir outros deuses (que você não conheceu)
e vamos adorá-los’ - não dê ouvidos a esse profeta ou intérprete de sonhos.
Trata-se de uma prova com que Javé seu Deus experimenta vocês, para saber se
vocês de fato amam a Javé seu Deus com todo o coração e com todo o ser. Sigam a
Javé seu Deus e a ele temam; observem seus mandamentos e lhe obedeçam; sirvam a
ele, e a ele se apeguem.” (Dt 13, 2-5)
Nada deve
nos afastar de Deus. “Amamos, porque Deus nos amou primeiro” (IJo 4, 19). Deus
é Amor. Nada deve nos afastar desse amor.
“A luz que
vemos é una com a luz que nos faz ver” (LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de João. Trad. por Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 168). Sem
o Amor de Deus, nada seríamos, pois não poderíamos amar.
E como
isso se deturpa em nosso pecado original, nesse contato com o mundo que nos faz
não conseguir enxergar a Deus? (Cf. ZUERCHER, osb, Suzanne. A espiritualidade do eneagrama: da
compulsão à contemplação. São Paulo: Paulus, 2001. p. 18 e segs). Rousseau,
ainda que com a visão, num contexto geral, presa aos contextos do mundo em que
viveu, nos diz: “a astronomia nasceu da superstição; a eloqüência, da ambição,
do ódio, da adulação, da mentira; a geometria, da avareza; a física, de uma vã
curiosidade; todas, e a própria moral, do orgulho humano. As ciências e as
artes devem seu nascimento aos nossos vícios: duvidaríamos menos das suas
vantagens, se o devessem às nossas virtudes.” (Discurso sobre a ciência e as artes, segunda parte).
Retornando
ao tema da tentação no deserto, primeiro, somos convidados a agir pela
necessidade, sem julgarmos o acerto de nossa ação. Realizar a tentação fácil, o
convite ao que está palpável, satisfazer a fome, ter.
É preciso
nesse momento sermos firmes e dizermos que, sobre tudo e todos está Deus, pois
o homem não vive somente de pão. Não são apenas as coisas materiais, mas o
invisível divino é que nos completa. Mas para isso temos de estar preparados,
sermos levados pelo Espírito (Lc 4, 1). Assim poderemos enfrentar a busca de
Deus no “deserto”.
É quando a
semente cai à beira do caminho, nos quais a Palavra não ecoa.
Esse
momento será sobretudo forte naqueles que são voltados para a ação, nos quais o
Espírito impele a agir na comunidade. Será uma provação para aqueles que têm a
tentação de não deixar nada a faltar – a si ou aos outros - e, assim, sem
perceber, pretendem prover mais do que Deus.
Amarás a
Deus de todo o teu coração!
Uma outra etapa será voltada àqueles que mais se recolhem no seu pensamento. Vencida a primeira tentação, o convite do mal – que sempre propõe supostamente um bem - se volta para aquele que avaliou o bem e o mal. E, em assim agindo, crê fazer o bem quando na verdade faz o mal…
É a
semente que chega a fazer raízes, mas é volúvel às coisas do mundo.
Rapidamente,
a necessidade que ultrapassou o primeiro momento transforma-se na sensação de
poder. Mas, só a Deus devemos adorar.
Devemos
ter serenidade para avaliar que o fruto daquelas ações é mau (Mt 12, 33). E,
assim, em radicalidade franciscana,
optar pelo Bem. Jamais, pelo aparente abrandamento do Mal, equivalente à
flagelação do Cristo por Pilatos.
Acreditar
que Deus deseja que persistamos na ação que evidentemente não está de acordo
com os mais óbvios preceitos cristãos e atentam contra a Família, a Igreja, o
outro, a dignidade humana, a Trindade, é aceitar a oferta do Poder sobre o temporal. É
deixar de adorar a Deus e substitui-lo por nossa livre avaliação.
É a ausência
da pobreza de espírito de que nos fala São Francisco em suas admoestações (c. XIV).
Resolve-se
assim a carência por uma apresentação tranqüila perante o mundo daqueles que se
acham pouco amados.
Amarás a
Deus de toda a tua alma!
Por fim,
aquele que está preso a este mundo não cessa de nos convidar. Uma vez que
tenhamos nos negado a fazer o que está à mão, que tenhamos visto que era errado
e persistidos firmes em Deus, ele buscará a sensação de fraqueza que ainda nos
resta. Seremos tentados a não ver que Cristo com os anjos une o céu e a terra (“os
anjos o serviam”, Mc 1, 13).
Será a vez
de nos cegar e, sem mais pensarmos que fazemos do certo o errado, compreendendo
que algo é errado e, ainda assim, fazê-lo. É a entrega definitiva ao erro. É o
salto do alto do Templo (Lc 4, 9).
Mas, “não
tentará ao Senhor, teu Deus”.
O Amor a
Deus impede que nos entreguemos abertamente ao erro. Isso seria duvidar de Deus
e por-lhe à prova. Não tentarás!
Isso fala profundamente
nas pessoas mais impetuosas, prontas a agirem tomadas pela paixão e o calor do
momento. Não tentarás! Só Deus é o Senhor.
É a
semente que luta contra os espinhos…
Amarás a
Deus de todas as tuas forças!
Amando a Deus no próximo com nosso pensamento, alma, coração e forças, poderemos chamá-lo de Pai em nossa inteireza. Faremos com que os céus encontrem a terra e Deus nos conduza em nossa missão.
A cada momento de nosso dia devemos refletir sobre a frase que eu devo dizer ("nem só de pão", "só a Deus adorarás...", "não tentarás..."), conforme o desejo que eu sinta no momento. E, sobretudo, ver a Deus no próximo. E isso significa compreender que estamos no mundo para servir, e não impor a nossa vontade.
Afinal, "o cristão que reza não pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu; procura, antes, o encontro com o Pai de Jesus Cristo" e "quem caminha para Deus não se afasta dos homens" (Deus Caritas Est, n. 37, 42).
Sobretudo
neste momento, atentemos para a advertência do Santo de Assis: “guardemo-nos
muito para que, sob a aparência de alguma recompensa ou de obra ou de ajuda,
não percamos ou afastemos do Senhor a nossa mente e o nosso coração” (Regra Não
Bulada, c. XXII, 25), para que “os negócios e … cuidados mundanos” (n. 20) não
sejam porta de entrada para o Mal e o afastamento de Deus e dos irmãos. Humildade e pobreza de espírito devem ser nossos objetivos.
Paz e Bem!
Nenhum comentário:
Postar um comentário