A vida é um mistério inesgotável e salvá-la exige Amor
A tentativa humana de controlar a vida participa da própria idéia de religiosidade, da sede de Deus.
Muitas vezes, a religião, em vez de ser um caminho de conformação à Vontade Criadora, é antes um desejo de estabelecer um relacionamento de deveres e haveres com o "além".
Tentar dizer quando começa e quando termina a vida faz parte disso.
Não que se desdenhe da tentativa médica de, ampliando o conhecimento do homem sobre a criação, identificar cada vez mais fatores de saúde que antes sequer sua investigação poderia ser pensada. Isso é bom, isso é desejável, mas isso não substitui a natureza, não faz um problema deixar de existir.
É preciso ver que a saúde, por mais que seja uma virtude da vida ("o Senhor fez a terra produzir os medicamentos: o homem sensato não os despreza. [...] Que a Saúde se Difunda sobre a Terra"; Eco 38:4.8; Campanha da Fraternidade CNBB 2012) não apaga a morte, porta da vida eterna. E a doença, apesar de não ser um caminho necessário, não deixa de ser uma condição do mundo.
O corpo físico que se degenera numa doença apenas aceita-a. Há um acoplamento entre a bactéria ou vírus, criaturas vivas ou apenas à espera dessa oportunidade, que estabelece uma relação com o corpo. Não é apenas a doença que "ataca", é o corpo que também "recebe".
E os motivos podem ser os mais diversos, de um dano causado por alguém, a um acidente, passando pela fome e pela miséria, e até mesmo um desequilíbrio entre o corpo, a mente e a alma.
Lutar contra a doença faz parte da liberdade que Deus concede. Aceitá-la faz parte do ser cristão.
Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, incorreu num equívoco da relação entre Direito e Saúde.
O Estado foi chamado de laico e, num processo de secularização das relações públicas, houve um afastamento do transcendente. Mas isso não foi afastado das pessoas, que são a realidade de qualquer ficção estatal.
As pessoas continuam a buscar no Estado aquilo que buscavam no divino. Só que naquele não se pode fazer oposição à existência de direitos e deveres de salvação.
Tenta-se alcançar resultados sobrenaturais, a partir dos avanços do conhecimento, substituindo o divino (Gn 2:17: a árvore do conhecimento do bem e do mal conduz à morte). Isso poderia levar à conclusão de que é preciso "dessacralizar" o direito à saúde, o Direito Sanitário. O Direito é uma linguagem humana e teria que assim ser tratada.
Mas essa conclusão - a dessacralização como solução - seria equivocada.
"A César o que é de César, a Deus o que é de Deus" (Mt 22:21; Mc 12:17; Lc 20:25). O seguidor de Cristo deve saber separar as realidades divinas das terrenas. O mundo e suas leis não tem como interferir no divino, mas é a este que deve servir, pois não se pode "servir a Deus e ao dinheiro" (Campanha da Fraternidade CNBB 2010; Mt 6:24; Lc 16:13). A Lei foi feita para servir o homem, e não o contrário ("o sábado foi feito para servir ao homem, e não o homem para servir ao sábado"; Mc 2:27). E não é servir o homem satisfazer seus desejos insensatamente.
Mas o fato de a criação do homem ter de servir aos propósitos divinos - e isso só acontece porque a santidade em cada um deseja Deus (disse Fernando Pessoa em Mensagem, Mar Português, o Infante, "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce"), não pode levar o homem a confundi-los. "O Espírito é que dá a vida, a carne não serve para nada" (Jo 6:63).
As coisas do mundo devem ser tratadas como tais, criações de Deus à disposição do homem. Este é que poderá trilhar o caminho da santidade fazendo bom uso das mesmas. As preocupações do mundo, servem apenas para o próprio mundo; "basta a cada dia a própria dificuldade" (Mt 6:34).
Portanto, a questão não é dessacralizar ou tirar o divino do Direito Sanitário. Este deve estar presente como fruto da reta razão. A questão não é dessacralizar, é "purificar".
De fato, está-se como que a adentrar um templo com oferendas como se, só por isso, a cura sobreviesse. A salvação vem da fé (II Tm 3:14; Lc 7:50, 17:19, 18:42). Ingressar assim no templo é profaná-lo. É preciso comparecer puro perante o altar (Mt 5:23-24: primeiro as pazes com o irmão, depois a oferta).
Então, está-se a tentar muitas vezes desejos de curas mediante a entrega da fé às coisas do mundo.
Sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, convém esclarecer de que se trata, seu objetivo e alcance dos efeitos da decisão. Ela está prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal e foi detalhadamente explicada na Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999. Essa lei foi muito saudada à época em razão de possibilitar uma ampliação do controle dos atos do Poder Público em geral pelo Judiciário. Cabe ressaltar que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, ou seja, de mecanismos para imposição da Constituição é um dos mais amplos do mundo.
Trata-se de um pedido, formulado diretamente ao Supremo Tribunal Federal - STF, para "evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público" e não houver outro meio para sanar o problema (artigos 1º e 4º, § 1º, da Lei). A Constituição traz no artigo 103 quem pode apresentar a ADPF. Entre os legitimados para isso estão, por exemplo, as confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional. Isso amplia a democracia do país.
A decisão irá fixar "as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental" discutido (artigo 10). Ela não vale apenas para o problema apresentado, o caso concreto, mas abstratamente para toda a população (erga omnes). Os Juízes, Desembargadores e Ministros ficam obrigados, nos processos que analisarem, a obedecer essa decisão, a qual é irrecorrível (artigos 10, § 3º, e 12). Se de alguma forma essa decisão for descumprida, esse descumprimento pode ser comunicado por Reclamação diretamente ao STF (artigo 13).
Apresentado assim o papel do STF no caso, já se vê que esse é um instrumento a ser manejado com bastante cautela, devido aos efeitos que acarreta.
Na ADPF 54, o STF teve de decidir se o abortamento de um feto anencefálico seria crime ou não (artigo 124 e seguintes do Código Penal Brasileiro). Saber se havia vida ou não. Isso é, inclusive, uma inusual incursão do Judiciário no controle da constitucionalidade do Direito Penal.
A alegação de que a vida de um anencéfalo é limitada não pode ser levado adiante porque toda vida é limitada de modo incerto e, sobremaneira, há várias outras doenças limitadoras.
Também o argumento contrário, o do risco existente em se permitir o aborto, tem mais sentido de debate político do que de Direito ou Justiça. Pois, se uma situação é excepcional, que se a analise seriamente. Não que se deixe de analisá-la por não julgar o outro capaz de fazê-lo. Isso seria o império da razão própria.
Por outro lado, dizer que se estaria obrigando alguém ao sofrimento, é novamente equivocado porque em situações de feto sem má formação também podem ocorrer transtornos os mais diversos. E é aceito que "a lei" obrigue a continuidade da gestação.
E em nenhum momento se disse que Deus quer sofrimentos vazios ou que a Igreja, comunidade de fiéis, não iria acompanhar a mãe atormentada.
Se houve uma concepção decorrente de atos sexuais humanos, faz parte da responsabilidade e da liberdade acompanhar e se solidarizar com as conseqüências. Acima de tudo e em qualquer circunstância, há de ser lembrado o exercício do perdão.
Como se vê, mesmo sem pretender analisar detalhadamente a todos os argumentos existentes, eles não logram ter maior substância.
E o pior é que a situação colocada em análise é anti-Cristã em todas as opções: ou permitir a provocação do aborto ou se condenar à prisão quem o faz, inclusive a mãe, conforme o caso. A prisão é uma opressão da qual Cristo liberta ("Eu estava na prisão, e vocês foram me visitar"; Mt 25:36). "O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo" (Is 58:6). Manter alguém preso não irá fazê-lo melhor ou ensinar valores cristãos. Salvo na hipótese de ser o único caminho necessário para deter a prática reiterativa de crimes pelo irmão.
E cabe lembrar que boa parte desses problemas que conduzem aos desvios sociais dizem respeito a males da sociedade, como a pobreza, a desinformação e, sobretudo, à falta de catequese.
A grande verdade é que é preciso se perguntar até que ponto a comunidade de fiéis precisa da ajuda coercitiva do Estado para impor suas convicções. E mais, impor pela força e pela ameaça de prisão.
Ainda que pese a decisão do STF, tal sorte de atos não destrói a cristandade, que não se sentirá obrigada a realizar tal procedimento doloso.
Outro problema está em se utilizar o dinheiro público para tais atividades de pecado. Pois também financiará esclarecimento e incentivo nesse caminho errôneo.
Da mesma maneira que muitas vezes a pena de prisão serve como fuga do real enfrentamento dos problemas reais, alegar que o aborto resolve uma questão de saúde pública é não querer se preocupar com o nascedouro desse problema.
Admitidos pelo STF os critérios sem substância e imprecisos, como já exposto acima, fica realmente aberta a possibilidade de interromper a vida por motivos ampliados de deformidades e de transtornos. Esse caminho fácil não é de santidade e de vida em paz, ao contrário do que se possa fazer parecer.
O Judiciário não estava diante de opções cristãs, eis a verdade. E não fez a escolha correta.
Ainda que o STF entenda que é livre para apreciar a extensão da constitucionalidade, ele é, por regras da democracia, preso a analisar o que foi apresentado a ele. Isso evita uma decisão sobre um assunto que não foi debatido ou sobre alguém que não tinha conhecimento da causa para se defender, por exemplo.
E a dimensão da questão é tão ampla que isso significa obviamente, a redução do espaço democrático. A castração da liberdade de decisão da sociedade sobre si mesma. É uma afronta ao livre debate.
A solução, agora, é a pronta atuação do Poder Legislativo.
Não se pode defender a prisão como salvaguarda para nossas dificuldades em fazer acreditar na vida. Mas também não se pode deixar valer indefinidamente uma decisão como essa, em tais estreitas circunstâncias, sem o debate público e democrático.
O Cristão já tem sua opção. Todo fiel quer ver seu ideal seguido por todos. Mas impor é violência.
É indispensável um amplo debate.
O Legislativo é o Forum apropriado e sua decisão - a Lei - pode se sobrepor ao resultado da ADPF. E, no mínimo, suscitar um novo debate de interpretação sobre a extensão do direito à vida. Pois poder-se-ia dizer, a depender do teor exato da decisão, que ela fixou o desejo da Constituição.
A construção de um espaço público democrático, livre e digno é um papel da Igreja. Não podemos culpar a outros por nossa falha, até para não julgar ou se remoer de erros próprios. Mas, lembrando de "A verdadeira alegria" de Francisco, Deus nos prova, o mundo se opõe a nossos desejos; outra coisa não foi revelada e prometida:
"Se alguém quer servir a mim, que me siga. E onde eu estiver, aí também estará o meu servo" (Jo 12:26).
Paz e Bem!
Fabiano Mendonça, ofs, é pós-doutorado em Direito Constitucional na Universidade de Coimbra (Portugal), procurador federal e Professor Associado de Direito Constitucional do Curso de Direito da UFRN
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